CAPUZ E O LOBO

Apresentação de CAPUZ E O LOBO, DE TIAGO SALGUEIRO E JOSE MANUEL SARAIVA
Livraria Gigões & Anantes — Aveiro, 30 de Março de 2013
Sara Reis da Silva
Instituto de Educação Universidade do Minho



  Capuz e o Lobo marca o reinício da actividade editorial da Lobo Bom, chancela que, há anos, lançou interessantes álbuns para pequenos leitores (pré-leitores). Mantendo a dualidade autoral que aí também se encontrava – “Texto de Tiago Salgueiro” / “Ilustrações de José Manuel Saraiva” –, este é, igualmente, um reencontro com um discurso verbal e um discurso visual que possuem singularidades. Este último, aliás, foi já reconhecido aquando do destaque que mereceu por parte do júri do Prémio Nacional de Ilustração – 2007 (12ª Edição) a obra Vermelho-Cereja (Ambar, 2007), escrita por François David e ilustrada por José Saraiva (1). Na altura, foi registado que a componente pictórica desta obra é sustentada por um uso muito particular de uma técnica frequente, criando um universo singular e marcadamente onírico.” Assinados por Tiago Salgueiro, lembramos, por exemplo, os volumes Um amigo gorila (Lobo Bom 2002), Um dragão na banheira (Gailivro, 2004), Anedotas Ilustradas (Gailivro, 2004), Anedotas de Animais Ilustradas (Gailivro, 2005), Adivinhas Coloridas (Ambar, 2006), Anedotas de Futebol Ilustradas (Gailivro, 2006) e Provérbios Coloridos (Ambar, 2007), entre outros.
  O título Capuz e o Lobo filia, à partida, a obra num vasto conjunto de volumes motivados por um dos intertextos clássicos mais vezes revisitado, actualizando-o, também pela ilustração que actua como reforço semântico. O Capuchinho Vermelho, conto habitualmente conotado com o universo literário vocacionado para a infância, serve de matriz à narrativa de Tiago Salgueiro e José Manuel Saraiva, um texto que situamos no domínio da recepçäo juvenil. Incorporando motivos da história em questão, Capuz e o Lobo pressupõe e reclama do leitor um pacto de leitura específico, simultaneamente flexível, aberto e disposto a um jogo “regrado” pelas acentuadas distâncias e afinidades temático-ideológias e ou formais entre este e as versões Perraultiana ou Grimmiana. 
  Graficamente muito singelo, Capuz e o Lobo propõe, não apenas desde a capa e a contracapa, mas também a partir das guardas iniciais e finais, um percurso interpretativo assente numa subtil contraposição de gestos, de espaços/cenários e, muito especialmente, de vivências, as do passado e as do presente.
  O relato principia com a referência a uma personagem feminina, situada no espaço citadino, figura cujas condições de vida podem facilmente (e infelizmente) ser reconhecidas pelo leitor da actualidade: professora desempregada, sem perspectivas de reencontrar trabalho. Esta decide abandonar a cidade “em busca do lugar onde aprendeu a ser feliz” (Salgueiro, 2013:3), ou seja, em busca da casa da avó na floresta. Como no texto canónico, também aqui acaba por encontrar um lobo no caminho. Trata-se do filho do Lobo Mau, um descendente do vilão do texto canónico, que tinha sido morto pelo caçador. Num longo diálogo, com intervenções extensas de ambas as partes, dão-se a conhecer duas histórias que, no fim de contas, se entrecruzam.
  No essencial, em Capuz e o Lobo, lê-se um demorado, intenso e denso diálogo entre as personagens anunciadas no título, um diálogo em cujas intervenções se pressente uma obsidiante ligação nostálgica ao passado. Aliás, é a memória que, em última instância, desencadeia o desenvolvimento da acção e é desta que emerge, enfim, todo o relato, todo o livro. 
  E, neste, são vários os elementos que se desviam substancialmente da narrativa matricial, detectando-se aí similitudes ou ecos da vida/vivências contemporâneas/da actualidade, muitas delas, aliás, atinentes à família e à sua desestruturação ou fragilidade, à infância e, até, à própria condição feminina.
  Se o discurso literário evidencia especiais notações sensoriais e sinestésicas, decorrentes, em larga medida, de um recurso assíduo, mas elegante, à adjectivação (2), a componente visual, avançando com sugestões ou pistas de leitura, convida a um olhar atento. As ilustrações corroboram o jogo ou a tensão presente-passado que pauta a obra. Com efeito, o contraste entre, por um lado, o azul nocturno das guardas ou o sombrio das primeiras imagens e, por outro lado, a recriação visual mais suave, clara e “viva” dos cenários naturalistas ou de pormenores relativos à infância não passam despercebido.
  Muito sinteticamente, Capuz e o Lobo, além de atestar a pervivência do texto clássico tornado célebre, no século XVII (1697), por C. Perrault e, mais tarde, no século XIX (1812), pelos irmãos Grimm, confirma, ainda, as potencialidades ideotemáticas e a in/atemporalidade dos principais tópicos que aí se ficcionalizam. Não será, certamente, acaso o facto da última palavra do conto ser “reminiscente”...


(1) Sobre esta obra, Ana Margarida Ramos escreveu Álbum sobre a relação do homem com a natureza e o ambiente, Vermelho-cereja é uma espécie de poema em prosa que canta uma beleza e uma perfeição em risco devido à acção humana. Neste sentido, é evidente a dimensão pedagógica que cruza o texto de forma implícita, alertando para a necessidade de protecção do meio-ambiente como forma de preservar as belezas naturais que rodeiam o homem, dando sentido e poesia à sua vida. As ilustrações de José Saraiva recriam com particular expressividade o meio natural, sublinhando a cor que dá titulo ao livro fazendo-a sobressair numa paleta onde estão presentes vários tons de azul e verde. Recorrendo a diferentes formas e perspectivas de representação do real, o ilustrador parece apostado em cristalizar aquelas que envolvem uma interacção do homem com o meio, destacando a beleza deste último. (sinopse disponível no portal do projecto Gulbenkian/Casa da Leitura).

(2) Cf. “bosques viçosos onde nasce a brisa limpa da manhã, com odores de cores intensas e matizes frescas e infinitas” (Salgueiro,2013:6).



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